segunda-feira, 24 de março de 2008

Uma pequena história em Nova York

O conteúdo deste blog, que também pode ser uma espécie de e-book, é uma coletânea de pequenas histórias que ocorreram nos últimos anos da década de 80, quando vivi em Nova York. Com apenas 21 anos, tive mais experiências boas do que más na metrópole do planeta. Meus Contos de Nova York tem uma dezena de textos e é o resultado de um dos melhores períodos da minha vida e que, de tão intenso, parece que tudo o que vivi lá se passou dias atrás, e não há 20 anos. Tenho grafados na minha memória os episódios que narro aqui e outros tantos que simplesmente resolvi não revelar. Estes pequenos contos – alguns engraçados, outros nem tanto – misturam realidade e invenção, embora quase todos os fatos relatados aqui, de fato, ocorreram. Para preservar pessoas e lugares, optei por criar personagens em vez de revelar seus nomes verdadeiros.

O começo da aventura

Minha relação com o exterior começou em meados da década de 80. Nem queria ir para algum lugar específico, mas queria ir para algum lugar. Em princípio, meu sonho girava em torno da Europa e sua História, seus museus, seus castelos e sua cultura. Mas quando se tem 20 anos, o destino é um imenso portão de acesso, liberado para milhões de oportunidades. Viajar era tudo o que eu queria. E me preparei para isso. Fiz incontáveis intensivos no Cultural, em Porto Alegre, e adorava traduzir músicas do Neil Young e do Bob Dylan, especialmente, mas também do Led Zeppelin e do Eric Clapton. Achei que serviria para melhorar meu inglês. E ajudou, acredite. Pouco, mas ajudou. As letras ampliam o vocabulário, reforçam o aprendizado de expressões idiomáticas e nos ensinam algumas gírias. Apesar de estudar o inglês yankee, naquela época meu sonho tinha nome e endereço: Londres, Inglaterra. O problema é que eu esqueci de revelar meu desejo ao destino e seus caprichos.

Eu tinha razões de sobra para sustentar minha obsessão por Londres. Pelo menos eu achava que tinha. Meu pai havia morado na Inglaterra e também na Noruega na década de 70 e era – e até hoje é – um grande incentivador dos que querem desbravar o mundo com uma mochila nas costas. Eu passava dias e dias conversando sobre a Europa com meu pai. Os olhos dele brilhavam ao falar sobre suas experiências. Peripécias nos aeroportos, gafes em inglês, passeios de trem pelo Velho Continente civilizado. Tudo aquilo só aumentava o meu desejo de me mandar.

Foi aí que, lá por 1983, meu pai me arranjou um emprego. Era auxiliar de escritório. Ganhava pouco, mas como não precisa ajudar financeiramente em casa, a grana defendia as festas e dava para comprar algumas roupas, discos e ainda conseguia trocar algum dinheiro por dólares. Fiz isso durante cerca de dois anos. Assim, minha viagem para o Exterior começou a deixar o campo das conversas na cozinha da casa do meu pai para ingressar na esfera das possibilidades. Aos poucos, senti que meu sonho se aproximava da realidade. E comecei a fazer conjecturas e levantar informações. Quanto custaria o aluguel de um apartamento? Quanto de dinheiro eu precisaria levar para me manter por alguns meses? Como seria lavar louças em um restaurante ou entregar pizzas? Enfim, tratei de começar a virar minha cabeça para a Zona Norte de Porto Alegre. Mais precisamente para o Aeroporto Internacional Salgado Filho.

Descobri que uma amiga vivia em Londres. Quero dizer, sabia que ela vivia entre Londres e algum outro ponto da Europa. Não era uma grande referência na sobriedade londrina, mas era melhor que chegar lá e não ter ninguém para dizer Olá, como foi de viagem? ou Seja bem-vindo! Tinha receio de chegar a um lugar completamente diferente, com outro idioma, outros costumes, outras regras, outro tudo. Acho que também tive medo de ter medo. Porque o medo fora de controle pode colocar tudo a perder. Meu antídoto contra esse sentimento era a determinação. Eu estava determinado e empolgado.

Havia retirado o passaporte na Polícia Federal, e o envelope que guardava no meu armário já estava ficando mais gordinho de notas de dólar de baixo valor. Enfim, o planejamento da minha sonhada viagem caminhava a passos firmes. Era primavera de 1985, e a idéia era embarcar entre janeiro e fevereiro do ano seguinte. Foi quando recebi uma notícia desanimadora. Minha amiga que vivia em Londres havia partido para um lugar incerto e não sabido. Pânico total. Meus contatos na Europa tinham se reduzido de uma viva alma para ninguém.

Fiquei confuso, inseguro e não sabia exatamente como lidar com a sensação de que toda aquela expectativa estava ficando no quase. O pior é que eu só tinha um único, solitário e escasso plano de viagem. Só tinha o plano A. Eu não tinha um plano B! Consumi alguns dias e muitas noites para me reabilitar do golpe que ele, o destino, havia me dado. Fritei neurônio para encontrar uma alternativa. Custei a admitir, mas tinha de começar do zero. Escolher outro lugar, outro país e, se possível, outro contato. Era preciso voltar à cozinha do meu pai. Entre pizzas e cervejas, novas conversas. Cada gole, uma idéia. Cada pedaço de calabresa, uma cidade diferente. Numa noite quente e mormacenta, pouco antes do meu aniversário, em novembro, deixei a casa dele um pouco afetado pelo consumo de Budweiser, mas feliz e eufórico novamente. Tinha mais que um novo lugar para sonhar. Eu deixei o prédio da Avenida Independência com uma nova cidade para viver: Nova York.

PARTE 1 - A primeira escala

Aquele dia nunca mais saiu da minha cabeça. Minha turma em Porto Alegre se preparava para encarar as loucas e quentes noites do carnaval de Laguna (SC) – que hoje, dizem, já não são mais as mesmas. Eu, que sempre fui chegado numa festa, entendia a euforia da galera, mas meus pensamentos estavam ocupados – e preocupados – com o que me esperava nos Estados Unidos. Embarquei em São Paulo num vôo das Linhas Aéreas Paraguaias – isso mesmo, Linhas Aéreas Paraguaias! Era o que tínhamos naquele momento! Pisei no Aeroporto de Miami por volta das 22h.

Fazia frio e eu não me sentia confortável, estava intranqüilo, inseguro e meio atordoado com o tamanho do aeroporto, grande demais para quem só tinha visto o velho e apertado Salgado Filho. Mas logo tive que encarar o primeiro desafio: o Departamento de Imigração. Fiquei na fila dos estrangeiros aguardando a chamada para apresentar meu passaporte e dizer ao agente o que eu queria fazer nos Estados Unidos. Não tive tempo de me olhar no espelho, mas acho que minha cara já começava a aparentar pavor. Aquelas histórias de que mesmo com visto muita gente é impedida de entrar no país deve ter congelado meus olhos no tamanho GG.

“Next!”, ouvi o agente gritar. Era para mim. Com uma pequena mochila, me aproximei do guichê e disse um singelo Hi!. Apesar de sentir segurança no meu inglês, achei melhor não dar uma de esperto. Falei o mínimo necessário. O cara nem respondeu. Pegou meu documento, minha passagem e foi logo perguntando quantos dias iria ficar nos Estados Unidos e quantos dólares eu levava na carteira. Com essas duas respostas, conclui que ele faria uma relação entre a grana que tinha e o número de dias que pretendia ficar. Disse que iria passar uns 10 dias e tinha US$ 1,3 mil. Não menti. Aliás, evite mentir. Pelo menos na frente de um agente do Departamento de Imigração dos Estados Unidos. Se desconfiarem de você, eles irão pedir para ver sua carteira. Um pequeno desencontro de informações pode frustrar seus planos e colocar fim à aventura. Meus olhos continuavam grandes, aguardando o desfecho da perícia no guichê. Dei uma olhada para a fila num gesto involuntário, talvez para aparentar tranqüilidade. Observei que as pessoas que aguardavam minha saída da imigração estavam como eu: com os olhos arregalados e com medo de serem barradas no baile. Eu ainda observava a fila quando o barulho do carimbo retumbou nos meus ouvidos. “Cuide-se em Miami. Tenha uma boa noite”, disse o agente, devolvendo meus documentos.


Peguei meu passaporte e saí caminhando apressado do guichê. Já com a mala na mão, comecei a percorrer os corredores gigantescos atrás do setor de informações. Queria vaga em algum hotel próximo do aeroporto. Imaginei que dormir em Miami e partir na manhã seguinte para Nova York seria a melhor alternativa. Não queria chegar de madrugada a uma cidade enorme, estranha e sem conhecer uma única pessoa. A idéia foi boa, mas a coisa não saiu como eu imaginava. Depois de comprar a passagem para as 8h da manhã do dia seguinte, descobri que não havia lugar em nenhum hotel nas redondezas.

O jeito foi dormir no chão do aeroporto. Encostei minha mala nas costas, acomodei a cabeça no banco, estiquei as pernas no carpete e abracei a mochila. Minha ansiedade foi vencida pelo cansaço. Apaguei. Só acordei cerca de duas horas depois, com um policial cutucando meu pé direito. Ele perguntou de onde eu vinha e para onde eu ia. Satisfeito com a minha resposta, ele disse para eu me agasalhar. “A temperatura está ficando cada vez mais baixa. Vista alguma coisa”, ordenou. Foi um toque legal, mas não consegui mais pegar no sono. Fiquei acordado até embarcar para Nova York num vôo da Continental.

PARTE 2 - Enfim, Nova York

Aquele domingo amanheceu cinzento em Miami.. Estava frio, mas nada que pudesse assustar alguém acostumado com os dias de inverno do Rio Grande do Sul. Percebi que estava bem menos ansioso do que no dia anterior. Até porque em Nova York eu não teria de passar novamente pelo estresse de encarar o Departamento de Imigração e sua fila de apavorados. A viagem foi tranqüila até o Aeroporto La Guardia, exclusivo para vôos domésticos. Ao sair da área de desembarque e colocar pela primeira vez meus pés na cidade que agitou meus pensamentos durante meses, respirei fundo.

Caminhando na contramão de dezenas de caras oferecendo táxi, registrei as duas primeiras impressões do lugar ao chegar à calçada. Impressão número um: ao contrário de Miami, Nova York estava gelada. Nevava muito. Impressão número dois: o cheiro. Juro. Tenho entranhado em algum lugar do meu cérebro o cheiro da cidade. Algo que mistura odor de catalizador de carro, vento frio e aroma de café. Pode parecer uma descrição nojenta, mas acho o cheiro de Nova York irresistível, atraente.


Entrei num yellow cab – procure pegar sempre um táxi amarelo. É mais seguro e tem preços, digamos, honestos – em direção ao Hotel Remington, na Rua 46, no coração de Manhattan e um tradicional reduto de brasileiros. Quem me deu a dica do hotel foi o meu pai. Não dei uma palavra com o motorista, que parecia um jogador do New York Knicks. Entre um e outro gole de chocolate quente ele me fez duas ou três perguntas. Eu só disse ‘yes’ e ‘no’. Conheço as minhas reações. Quando fico muito quieto, tem coisa. Senti que começava a ficar com medo da cidade. O carro avançava rumo à Manhattan, e eu tentava acompanhar com os olhos os prédios altos, as praças e ruas desertas, típicas de um domingo nevado.

O táxi parou na frente do Remington. Foi quando protagonizei o primeiro lance bisonho em terras norte-americanas. Paguei a corrida, recebi o troco e fiquei aguardando o jogador de basquete descer para abrir o porta-malas e tirar minha bagagem. Mas ele ficou imóvel, só me olhava pelo retrovisor. E eu de olho nele, também pelo espelho interno. Tinha receio de descer do carro para pegar minha mala e, neste meio tempo, ver o carro arrancar com todas as minhas roupas. Imagine ficar sem cueca, meia, calça, casaco, blusão, camiseta e botas no primeiro dia em uma Nova York congelada pela neve. Decidi que daquele banco eu não sairia. Mas o motorista perdeu a paciência comigo:

Ele: “Por que você não pega sua bagagem?”
Eu: “Por que você não abre o porta-malas?”
Ele: “O porta-malas já está aberto, senhor.”

Constrangido, olhei para trás e vi o capô traseiro escancarado. Até aquele dia do ano de 1986, nunca tinha visto um carro que o porta-malas poderia ser aberto a partir de um botãozinho interno. Pedi desculpas e desembarquei. Por via das dúvidas, agi rápido. Evitei perder o contato com a lataria do carro e, antes de fechar a porta, peguei a bagagem rapidinho.

Entrei no hotel. Perguntei se tinha vaga. Tinha. Disse que queria um quarto por alguns dias. Fui aceito depois de pagar antecipadamente duas diárias de US$ 60 cada. Subi acompanhado do segurança do hotel, que também parecia um jogador de basquete. Enquanto levava minha mala, ele disse ser um apaixonado pelas coisas do Brasil, como o carnaval, o Rio, aquelas coisas que sempre falam do país. Agradeci e entrei no apartamento confortável. Sentei na cama por alguns instantes. Ao lado da cabeceira havia uma pequena janela vertical – daquelas que têm escadinhas do lado de fora do prédio. Isso mesmo, aqueles prédios que a gente costume ver nos filmes. Arrastei a cortina. Deixei a janela livre para ver a neve cair devagar.

Olhando fixamente para a rua até não perceber mais o que estava vendo, o curta-metragem da minha vida passou pela cabeça. Lembrei de coisas e pessoas importantes e irrelevantes. Recordei fatos engraçados e tristes. Vi com perfeição os rostos da minha mãe, do meu pai e dos meus irmãos. De tias, tios e primos. Enxerguei meus avós, meus amigos e os olhos negros da namorada que havia deixado horas antes no saguão do aeroporto de Porto Alegre e com quem jamais voltaria a ter um relacionamento como antes.

Recuperei o visual da janela e da neve, que continuava flutuando pelo ar. Pensei o que todas aquelas pessoas que eu amava estariam fazendo naquele momento em que eu estava só, absolutamente só, num quarto de hotel na maior cidade do planeta. Joguei as costas para trás, encostei a cabeça no travesseiro e não segurei o choro. Chorei de soluçar. Acho que nunca mais chorei daquele jeito. Aos poucos, fui me acalmando até perceber que já havia chorado demais. Então, decidi que eu estava onde muita gente queria estar. Eu me dei conta que precisava cair na real e me reerguer da saudade que me pegou de surpresa olhando a neve cair. Levantei, tomei um banho, coloquei uma roupa quente e encarei a neve nas ruas. Naquele momento começava a grande aventura da minha vida.

PARTE 3 - Conhecendo o terreno

Foi uma caminhada longa e despreocupada, apesar dos cerca de 15°C negativos. Fiquei fascinado com as ruas largas, os prédios e os detalhes da arquitetura de edifícios lindos, alguns construídos no século XIX, mas plenamente conservados, e outros modernos, misturando vidro e metal. Bateu a fome e, como não conhecia nada, preferi encarar um lanche no Burger King. Devidamente alimentado, voltei para o calor do hotel.

O frio já estava passando dos limites. Minhas botas não eram as mais apropriadas para enfrentar uma temperatura daquelas. Meus pés estavam gelados. Antes de subir para o quarto aquecido pela calefação, comprei alguns jornais. Queria ler as notícias, saber o que estava acontecendo e, de quebra, dar uma olhada nos classificados. Além de aproveitar uns dias em Nova York, poderia descolar uma vaga em algum restaurante. Seria uma ótima levantar uma grana nas férias, embora a lei americana não permita o trabalho de estrangeiros sem um visto adequado para isso.


Mas não seria eu, um cara de 20 anos recém-chegado à América, que teria poder de desestabilizar as relações diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos por uma simples vaga em um dos milhares restaurantes nova-iorquinos. Todo mundo sabe que boa parte dos moradores da cidade trabalha de forma ilegal, exercendo atividades que os americanos não estão mais dispostos a fazer. Integram o mundo do subemprego as vagas de faxineiro, operários da construção civil (pequenas obras e reformas), carregadores, garçons, auxiliar de garçons (busboy), mensageiros, engraxates e lavador de pratos.

Aliás, aquele papo de ir para os Estados Unidos lavar pratos não passa de folclore. Pode até ter sido a porta de entrada de imigrantes brasileiros nas décadas de 60 e 70. Mas a partir dos anos 80, os mexicanos tomaram conta da função. Só eles conseguem lavar pratos em grandes restaurantes. Só eles agüentam – não sei como – as altas temperaturas das louças que saem da pré-lavagem das máquinas que agilizam a rotina frenética da cozinha. É inacreditável como suportam. O calor das porcelanas e dos metais é insuportável. Queima como se você estivesse colocando a mão dentro de uma churrasqueira. E é preciso colocar a mão no interior da máquinas dezenas de vezes por hora. Brasileiro gosta de sofrer, mas essa missão ele preferiu deixar para os irmãos mexicanos.

Num degrau mais elevado do subemprego estão os cargos de motorista de táxi, de caminhão ou de limosines, bartender de bares ou clubes, balconista (o fato de saber dois idiomas é fundamental e agrada muito os comerciantes), babysiter e por aí vai. Mas eu não queria fazer carreira no submundo da sobrevivência. Só queria me divertir. Claro que só existe divertimento quando se tem algum no bolso, mas não fui para os Estados Unidos para tirar o emprego de ninguém, juntar dinheiro e voltar rico à terra natal. Tanto não fui com este objetivo que voltei logo para o Brasil e já estive na América outras vezes. Fui novamente a Nova York em 1994 e quatro anos depois passei alguns dias em Washington e Detroit. Nunca pretendi viver para sempre o sonho americano. Só queria curtir um pouco este sonho. Não vivemos sonhos eternamente, você sabe. Sonhos são efêmeros, rápidos. Por isso são inesquecíveis.

PARTE 4 - Classificados

Onde eu estava mesmo? Ah, sim, nos classificados. Juntei minhas anotações e passei a segunda e a terça-feira conhecendo um pouco de Manhattan. O frio continuava intenso, mas o sol brilhava – adoro essa sensação de muito frio com sol. De vez em quando, entre um café e outro, lembrava dos recortes e ia conferir a tal vaga. Na maioria das vezes, evitei entrar nos bares e restaurantes em busca de trabalho. Mais por insegurança, porque não sou nada tímido. Meu medo não era levar um ‘Não’. Meu medo era ouvir: ‘Ok, boy. Job is yours.’ O que eu faria se, na tentativa de pegar um emprego eu realmente conseguisse o emprego. Enquanto não dava fim ao meu pequeno dilema trabalhista, conheci o Empire State, o Madison Square Garden (ah, o Madison... Quantos jogos de basquete e shows eu viria a assistir lá... Alguns deles em ótima companhia. Outros, nem tanto). À tarde, dei as primeiras espiadas no Central Park, que está encravado na minha mente até hoje. É o melhor lugar para ficar quando se está na grande cidade sitiada por prédios.

Parece incrível, mas em 72 horas eu já caminhava por Manhattan com uma certa desenvoltura. Algo me fazia sentir bem naquelas ruas. Só uma coisa me preocupava naquele fevereiro de 86: dinheiro. Sim, as diárias do Remington consumiam um bocado das minhas economias e eu não era exatamente um cara controlado com grana no bolso. Se antes o emprego não passava de uma experiência divertida, agora já começava a se tornar uma necessidade. Na minha busca por um bico, conferi um anúncio no jornal. Era num restaurante bem freqüentado e chique de Manhattan, na Rua 72, pertinho da Broadway.

Fui recebido pelo dono do restaurante. “Hi”, eu disse. “Moring”, young man”, respondeu, já emendando se eu estava ali para ser o busboy que ele precisava. Falei que sim. Daí ele me fez a pergunta que eu mais temia: “Você é legal nos Estados Unidos”. Não menti. Lembre-se: evite mentir. Pelo menos na frente de um agente do Departamento de Imigração e de alguém que está prestes a te conseguir um emprego. Disse que não era legal, que estava em Nova York havia poucos dias, mas que meu dinheiro estava terminando e eu precisava pegar um emprego temporário apenas para recuperar minhas economias e me mandar de volta pra casa. Não tinha como ir embora do país sem dinheiro. Como num filme, ele saiu de trás do balcão, caminhou lentamente até a porta de entrada e arrancou da porta de vidro o anúncio para busboy e se virou para mim: “Estou te esperando amanhã, 9h”.

Fiquei assustado. Amanhã? Mas eu tinha planejado ir ao Chinatown, ao World Trade Center (em 1986 as Torres Gêmeas ainda estavam lá, você sabe) e dar outras das minhas voltinhas pela cidade. De qualquer maneira, disse um quase inaudível “Ok”. Antes de ir embora, percebi que acabava de chegar a um lugar diferente. Eu já estava na porta, quando o dono do restaurante me chamou.

Ele: “Onde você está hospedado?”
Eu: No Remington, na 46. Um pouco caro.
Ele: Você precisa fica em um lugar mais barato. Venha cá.

Voltei a me aproximar do balcão. Em minutos, ele ligou para o YMCA, a Associação Cristã de Moços. É uma espécie de hotel para estudantes, com preços muito mais acessíveis. No meu caso, eu passaria a pagar menos da metade do que pagava no Remington. Como se me conhecesse há tempos, ele confirmou minha reserva no YMCA. Saí do restaurante encantado com a receptividade do cara.

A partir daquele momento, meus passeios estavam cancelados. Percorri o trajeto da 72 até a 46 a pé. E rápido. Queria chegar logo ao hotel, pegar minhas coisas e tomar o rumo do YMCA. Cheguei com calor ao Remington, apesar dos 14°C negativos. Subi correndo até o meu quarto, coloquei tudo dentro da mala e da mochila e desci. As minhas diárias estavam todas pagas, mas mesmo assim fui ao balcão para me despedir dos meus primeiros anfitriões. No entanto, fui impedido de sair. Surpresos, a atendente e o segurança me perguntaram para onde eu estava indo. Disse que havia conseguido uma vaga no YMCA da 14th Street, West Side. Meus amigos do Remington não se convenceram tão facilmente. O segurança quis saber se eu já conhecia o lugar.

Ele: “É um lugar limpo? O que te pareceu as pessoas que trabalham lá?
Eu: “Não sei como é o lugar. Nunca estive lá. E também não sei como são as pessoas.
Ele: “Deixe suas malas aqui. Nós tomaremos conta delas para você. Vá ao YMCA. Caso o ambiente seja de seu agrado, volte e busque suas coisas.
Eu: “Muito obrigado. Volto em seguida”.

Confesso que nunca esperava essa seqüência de lances de solidariedade, de ajuda, protagonizados numa única manhã em plena Nova York, a metrópole preferida pelos cineastas para ser o cenário de filmes de violência e criminalidade. Além dessa cordialidade surpreendente, preciso dizer que sempre fui um cara de sorte. Muita sorte. Desde que nasci, uma estrela me acompanha. Você pode não acreditar, mas eu sei exatamente que isso ocorre comigo. Eu sei justamente o tamanho da estrela que me ilumina. Duas horas depois, eu bebericava uma Budweiser, confortavelmente instalado no YMCA. Tinha um lugar mais barato para dormir e um emprego para recuperar o investimento. Que felicidade!

Parte 5 - Hora de trabalhar

Meu primeiro dia de trabalho foi como o primeiro dia de trabalho de todo mundo, em qualquer lugar do mundo. Com um detalhe: eu não tinha a mínima idéia do que deveria fazer no restaurante. A função de busboy era uma incógnita. Não havia aprendido nos cursos de inglês nem nas músicas que traduzia o que significava busboy. Eu nunca tinha ouvido falar do menino-ônibus. Na chegada, o chefe dos garçons me apresentou para os colegas e pra galera da cozinha. E fez as recomendações fundamentais para o bom andamento do trabalho.

Ele: A sua função aqui é retirar das mesas as louças e copos sujos depois que os clientes fizerem as refeições, colocar tudo na bandeja e levar para a cozinha.
Eu: Só isso?
Ele: Não. Depois de deixar tudo na cozinha, volte para a mesa e pergunte quem quer american coffee?
Eu: Por que tenho que dizer american coffee e não apenas coffee?
Ele: Porque você está nos Estados Unidos, respondeu meu chefe, seco.
Eu: Ok.
Ele: Fale o mínimo possível com os clientes até que o seu inglês esteja melhor.
Eu: Certo. Farei isso.
Ele: Outra coisa: Quando clientes novos chegam, você precisa servir água para todos os que estiverem na mesa.
Eu: Não preciso falar com eles neste caso?
Ele: Não. Sirva os cálices de água a todos. Em algum momento, todos irão beber.
Eu: Ok.

O restaurante funcionava 24 horas por dia e servia do café da manhã à lagosta. No começo, claro, me atrapalhei. Garçons e busboys atuavam em determinadas áreas. Ou seja, o salão era fatiado em quatro partes. Um sinal com a cabeça foi a senha para eu levar água a um casal que acabara de ser recebido pelo garçon. Peguei a jarra e fui. Servi os dois cálices e saí. Enquanto fazia meu trajeto de volta, o garçon fez um novo sinal. Percebi que tinha feito algo de errado. Olhei para trás e vi o casal imóvel, olhando para a mesa. Voltei, pedi desculpas e retirei a enorme jarra que atrapalhava a troca de olhares entre os pombinhos.

Aos poucos, fui me acostumando com a rotina do restaurante e gostando do que fazia. Com o inglês fluente, acabei me transformando em um garçon falante, muito educado e cheio de entusiasmo. Fiz amizades com americanos e, especialmente, com americanas. Volta e meia lembro de Dorothy. Era uma típica nova-iorquina: ruiva, de olhos verdes, inteligente, alegre e que falava muito alto. Quase gritava. Mas o seu estilo frenético me ajudou a deixar Porto Alegre bem mais para trás.

Já não ligava mais para o Brasil pra dizer que eu estava com saudade nem que estava louco para voltar. As ligações para os meus pais eram menos freqüentes, mas entusiasmadas com a vida que levava em Nova York, apesar de reclamar muito do volume de trabalho. O YMCA também havia ficado para trás. Depois de um tempo carregando bandejas, fiz algumas amizades legais. Daí a encontrar um canto na casa de alguém não demorou muito. Dormia na sala de um apartamento em Bay Ridge, no Brooklyn. Um lugar lindo, que nada tem a ver com a fama do Brooklyn no Brasil. Brooklyn é praticamente uma cidade, de tão grande. Há áreas sinistras – na sua cidade não tem nenhuma área sinistra? –, mas em geral é um distrito absolutamente agradável, onde as pessoas se cumprimentam quando se cruzam pelas ruas, na padaria ou nos bares irlandeses espalhados pelo bairro.

Pelo menos era assim antes de 11 de setembro de 2001. Ainda passei por um studio na 8ª Street, em Manhattan, mas acabei voltando ao Brooklyn, onde aluguei o andar térreo de uma casa muito simpática na Senator Street. Adorava a casa, a vizinhança, a segurança e meus vizinhos irlandeses que moravam no andar de cima. Eram festeiros, bebiam mais que o quarteirão inteiro, sempre ao som de Rod Steward, e causavam problemas ao proprietário porque resistiam em pagar o aluguel.